Carlos Castilho, Observatório da Imprensa
"Uma polêmica em curso na imprensa norte-americana permite vislumbrar
uma mudança radical na forma como é avaliada a credibilidade de um
jornalista profissional. O caso da reportagem investigativa da revista Newsweek sobre o descobridor da moeda virtual Bitcoin mostrou que a reputação de um repórter ou editor já não está mais no consenso de seus colegas, mas na massa indiferenciada de usuários da internet.
É uma mudança radical porque a credibilidade profissional não surge
mais a partir do meio jornalístico, um universo bem mais restrito e
ordenado do que o ambiente caótico e complexo dos milhões de
internautas espalhados pelo planeta. É mais uma das grandes mudanças
provocadas, no jornalismo e na imprensa, pela Word Wide Web, que
completou 25 anos de existência na quarta-feira (12/3).
A identidade do criador do Bitcoin é um enigma que desafiava os
repórteres investigativos até que Leah Goodman publicou uma matéria de
capa da revista semanal Newsweek, apontando o engenheiro californiano Dorian
Nakamoto como o inventor da moeda virtual que
está provocando arrepios no mundo financeiro internacional. Nakamoto
negou que fosse o inventor e o semanário norte-americano acabou
envolvido num delicado imbróglio jornalístico, pois Leah Goodman, uma
experimentada repórter investigativa, passou a discutir com internautas
que contestavam os dados inseridos na sua reportagem.
A repórter baseou a sua defesa em sua experiência profissional
reduzindo a importância dos fatos apresentados pelos seus críticos
virtuais, entre os quais surgiram também vários jornalistas. O caso
mostra como um profissional formado no chamado jornalismo industrial
pré-internet pode acabar como um peixe fora d’água no jornalismo
pós-industrial da era digital. A reportagem de Goodman foi produzida
seguindo os parâmetros tradicionais da imprensa norte-americana.
A revista Newsweek, por seu lado, ao apostar no impacto da
revelação da identidade do inventor do Bitcoin, pretendia atrair
leitores para alavancar um projeto de recuperação da receita publicitária.
Outro exemplo da estratégia convencional de produzir matérias da capa
chamativas em revistas semanais de atualidade para aumentar tiragens e
vendas.
Essas duas posturas induziram a repórter e a revista a não levarem em conta a chamada blogosfera, milhões de pessoas que publicam na Web, não compram a Newsweek e
que opinaram com base em cópias da reportagem distribuídas por redes
sociais, blogs e outros sites da internet. O universo dos compradores
tradicionais é muito menor, mais uniforme do ponto de vista cultural e
pouco inclinado a bater boca pela rede.
O mundo da internet é diferente e o professor de jornalismo Jay Rosen, da Universidade Municipal de Nova York (CUNY), foi direto ao ponto ao assinalar que a revista cometeu um erro na sua estratégia editorial, que serve de alerta para todas as demais publicações online.
Segundo Rosen, a repórter Leah Goodman apresentou os resultados de sua
investigação como um fato irretorquível, quando na verdade deveria
tê-los publicado como uma tese sujeita à discussão. Sua longa vivência
no meio impresso levou-a a não perceber a mudança de público leitor.
Os repórteres formados na era pré-internet tendem a apresentar uma
reportagem como um produto acima de qualquer dúvida, fato para o qual
contribui a limitada capacidade de correção por parte do público, cuja
participação só era aceita quando o erro era realmente grave. Na era
digital, a postura mudou porque é impossível a um jornalista sintetizar em sua reportagem toda a complexidade dos fatos,
números, processos e objetos sobre os quais ele trabalhou. E, assim
sendo, ele sempre estará sujeito a correções, adendos e críticas, nem
sempre amenas, de milhares de internautas que tomaram conhecimento da
reportagem.
Por prudência e principalmente por assumir a mudança de contexto na internet, os jornalistas não podem mais adotar ares de donos da verdade,
mesmo com base numa longa experiência e na respeitabilidade dos colegas
de profissão, para evitar situações embaraçosas como as vividas por
Leah Goodman e a revista Newsweek.
A reputação de um jornalista depende agora de um consenso ampliado e
principalmente de sua capacidade de recolher os dados, sugestões e
críticas construtivas geradas pela sua reportagem para ampliar o
conhecimento da sociedade sobre o tema abordado. O produto jornalístico deixa de ser o ponto final num
trabalho informativo para ser o ponto de partida para um debate e para o
compartilhamento de dados, informações e conhecimentos.
Não se trata de uma mudança provocada por preferências individuais ou
empresariais, mas pela nova realidade criada pelas novas tecnologias de
comunicação e informação que passaram a condicionar irreversivelmente o mundo em que vivemos."
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